sábado, 25 de abril de 2009

O Zé.

Leiam a história que se segue e vejam se se conseguem lembrar de um país que tenha uma história semelhante à do Zé.

O Zé tinha um terreno. Mas como o Zé ainda era menor, era o pai que mandava no Zé. No terreno o Zé tinha um moinho, tinha um poço, tinha um gerador, tinha um celeiro, uma casa modesta e várias máquinas agrícolas pequenas, mas do que produzia o pai tirava-lhe uma parte do rendimento, o qual guardava. Como o terreno não produzia por aí além, o Zé tinha que viver com pouco e viver uma vida modesta, não podendo fazer grandes gastos em luxos. O pai do Zé era uma pessoa severa e não admitia que o Zé reclamasse. Um dia, num dia primaveril, num dia 25 (como hoje), o pai do Zé morreu, tendo imediatamente o lugar do pai sido tomado por um padrasto. O padrasto não parecia má pessoa e começou a tratar o Zé de uma forma muito mais agradável, deixando-o desabafar as suas mágoas. Vendo também que o Zé vivia com um orçamento um bocado apertado, e para que o Zé gostasse de si, tomou uma primeira medida: pegou no dinheiro que o pai do Zé guardara e começou a dar ao Zé um pouco todos os meses, o que fez com que o Zé pudesse viver um pouco melhor e começar a comprar coisas que antes não podia. Claro que o padrasto do Zé também tinha gastos, por isso ficou com metade do que o pai do Zé guardara, para si, para os seus gastos. Durante uns tempos o Zé andou muito mais feliz, fez obras na casa, e fazia desabafos com o padrasto, coisa que o pai não lhe permitia. Entretanto, continuava a receber mais algum por mês do dinheiro que o pai lhe tinha tirado durante alguns anos e a vida seguia de vento em popa.
Só que o Zé não produzia mais do que nos tempos do pai e o dinheiro que o pai guardara estava a acabar e o Zé teria que, dentro em breve, voltar à vida anterior. Como esta melhoria de vida que estava a ter tinha sido um dos motivos por que o Zé não lamentara a substituição do pai pelo padrasto, o padrasto tratou de arranjar maneira de não privar o Zé da vida que levava – claramente muito acima da que poderia levar face ao que a quinta rendia – e tratou de ir pedir dinheiro a um vizinho. O vizinho não se importou de emprestar dinheiro, mas avisou logo que um dia este teria que ser restituído e com juros. O padrasto não se importou, pois não queria ver o Zé a levar a vida que levava antes. Claro que pediu um pouco mais do que aquele que entregou ao Zé, pois necessitava de continuar a levar a sua vidinha e até estava a precisar de trocar de carro. O Zé não sentiu, portanto, quando o dinheiro do pai acabou e continuou a levar a sua vida. Entretanto o vizinho não pôde emprestar dinheiro durante muito mais tempo sem garantias, por isso, para poder continuar a conseguir o dinheiro para que o Zé continuasse a levar a sua vida (já comprara mobílias novas a um comerciante da zona, as quais estava a pagar a prestações, com juros não muito altos, dissera-lhe o padrasto), o padrasto do Zé teve que dar o moinho como garantia. Como o tempo passou e os empréstimos eram cada vez maiores e os juros tornavam-se incomportáveis, o padrasto teve que dar o moinho ao vizinho e pagar de cada vez que o utilizava. Como os juros eram já de montantes insuportáveis, e ainda tinha que pagar pela utilização do moinho, o padrasto do Zé vendeu o poço, passando também a pagar pela água e pediu dinheiro a outro vizinho, que lho emprestou com juros. Entretanto o padrasto do Zé decidiu comprar uma mota ao Zé, para que o Zé continuasse a levar uma vida melhor do que a do tempo do pai e comprou a mota a prestações, ficando o Zé a pagar as prestações da mota, dos móveis, do dinheiro emprestado e a pagar a utilização do poço e do moinho, tudo isso sem que a quinta produzisse mais; antes pelo contrário, a quinta produzia menos, pois o padrasto dissera ao Zé para não trabalhar tanto e para dar mais passeios de mota. Para poder pagar isso tudo, o padrasto do Zé foi pedir dinheiro a outro vizinho (ficando também com algum para si, para construir uma casa maior para si e para a mãe do Zé), mas este já só lhe emprestou com uma taxa de juro mais alta, pois o risco de o Zé não lhe conseguir pagar era grande (eram já muitas dívidas que o Zé acumulava e a quinta não produzia mais) e com a garantia do gerador. Passado um tempo, e como o Zé não ganhava para tanta despesa, o padrasto vendeu o celeiro, passando o Zé a pagar renda e pagou ao vizinho que ficara com o gerador como garantia, gerador esse que vendeu a seguir também, ficando com algum para si. Como já tinha pago a esse vizinho e o dinheiro da venda do gerador também estava a acabar, o padrasto voltou a ir pedir dinheiro a esse vizinho, que lho emprestou, tendo aí ficado com algum para mobilar a sua casa como deve ser. Entretanto, o Zé decidiu comprar um LCD, um DVD e uma aparelhagem. O Zé vivia como nunca vivera: tinha tudo do bom e do melhor, trabalhava cada vez menos e passeava cada vez mais. Até uma vinha que lhe dava um trabalhão desgraçado tinha sido arrancada, para vender por bom dinheiro ao vizinho (eram umas videiras de uma casta rara, que o pai lhe comprara em tempos, com o dinheiro que lhe “roubava” todos os meses e, afinal, para quê ter aquele dinheiro todo junto se só servia para gastar em coisas que davam trabalho?). Agora o Zé comprava o vinho lá fora e se não lhe apetecesse ir tratar das batatas e dos feijões também não havia problema, pois com o dinheiro que o padrasto lhe dava sem trabalhar quase nada, podia comprar tudo aos vizinhos. E o padrasto também nunca vivera como agora: tinha uma mansão mobilada com tudo o que há de melhor e um carrão, tudo comparado com o dinheiro que pedia emprestado para o Zé.
Com o passar do tempo, já nada do que estava dentro da quinta era do Zé e este tinha que pagar para utilizar tudo o que estava na sua quinta e trabalhava cada vez menos, mas recebia cada vez mais, pois o padrasto conseguia sempre arranjar quem lhe emprestasse dinheiro.
Mas um dia… Um dia o padrasto não conseguiu arranjar quem lhe emprestasse mais… De um dia para o outro, o Zé deixou de receber dinheiro do padrasto e teve que se ficar pelos parcos rendimentos da quinta (cada vez menores), pois já ninguém emprestava mais, visto que já ninguém acreditava que o Zé conseguisse, sequer, pagar os juros do que devia, quanto mais o capital. E o Zé viu, de um momento para o outro, os vizinhos entrarem-lhe em casa para lhe tirarem o LCD. Foi ter com o padrasto para saber que raio se passava, mas este respondeu-lhe que a coisa estava má, mas, mesmo sem o LCD, ainda estava muito melhor do que nos tempos do pai, pois ainda tinha a mota, a aparelhagem, a mobília…
Quando lhe entraram na casa para lhe levar a aparelhagem e o DVD, a resposta do padrasto foi que, mesmo assim, ainda tinha a mota, as mobílias e ainda tinha um padrasto que o deixava falar à vontade, que o ouvia, ao contrário do tempo do pai…
Entretanto, levaram-lhe a mota, mas o padrasto falou-lhe que ainda estava muito melhor que nos tempos do pai, pois ainda tinha mobília e um padrasto amigo, que o ouvia…
Num piscar de olhos o Zé ficou sem todos os luxos que tinha e já não era sequer dono do que estava na quinta. Tentou recomeçar a trabalhar, mas, desabituado como estava, já lhe custava muito mais que antes; foi falar com o padrasto, mas este separara-se da mãe e tinha tudo em seu nome, pelo que a mãe ainda ficou a viver com o Zé na casa vazia. Como não produzia o suficiente para pagar o que devia, ficaram-lhe com a quinta e com a casa: fora posto na rua e não tinha onde viver. O novo dono da quinta construiu uma barraca com uns paus mal amanhados e um telhado feito com umas chapas umas por cima das outras, sem água nem luz, e pô-lo a trabalhar de sol a sol na quinta por um salário muito baixo. O dinheiro que recebia mal dava para comer mais que uma sopa quase só feita de água e para pagar os juros da dívida. O Zé estava arruinado! Iria passar o resto da vida a trabalhar como um escravo e nunca mais podia aspirar a ter o nível de vida razoável que levava nos saudosos tempos de seu pai, onde trabalhava o suficiente para não faltar nada em casa, embora sem grandes luxos… Se ao menos ele tivesse pegado no dinheiro que o pai lhe deixara e o tivesse gasto a comprar um tractor, podia ter aumentado a produtividade da sua quinta, podia ter passado a ter uma vida menos dura e ainda podia ter feito uns biscates nos terrenos dos vizinhos para juntar algum e comprar outra quinta e arranjar trabalhadores para trabalharem por conta dele. Mas teve o azar de arranjar um padrasto que não só lhe sacou um dinheirão como o incentivou a viver à grande sem trabalhar e tudo para que ele não tivesse saudades do pai e mostrar que consigo como padrasto a vida era muito melhor do que no tempo do pai.

Até aos dias de hoje, ainda ninguém deixou de emprestar a esse país cuja história se assemelha à do Zé, mas quando isso acontecer… Nesse país, todos os Zés terão saudades do pai.

sábado, 18 de abril de 2009

Estado de direito.


No outro dia ouvi que dívidas da banca, num valor bastante avultado, tinham prescrito ou estavam a prescrever. Ouvi também que pessoas estavam para receber coimas em casa por não terem entregue a declaração de IRS, mesmo que essa entrega não servisse para nada, pois os seus rendimentos eram tão baixos que não havia IRS a pagar. Ouvi ainda Isaltino Morais a dizer que havia uma lei que obrigava detentores de cargos públicos a declarar os seus bens, mas que essa lei não era para cumprir, e que quase ninguém a cumpre. Ainda ouvi o economista Silva Lopes (e outros) a dizer que se deviam baixar os salários. Também ouvi que os partidos da oposição (porque estão na oposição) querem uma lei contra o enriquecimento ilícito, mas o PS não quer, pois é inconstitucional (e não se pode mexer na Constituição, excepto se for para malhar no bolso do povo). E ouvi que o próximo cão da Casa Branca é um cão de água português (cão de água ibérico, para os espanhóis).
O leitor estará neste momento a interrogar-se o que é que estas coisas têm a ver entre si e porquê estarem sob o título “Estado de direito”. Pois bem, apesar de umas coisas parecerem mais desfasadas do que as outras em relação ao título e entre si, a verdade é que têm tudo a ver. Analisemos cada uma delas.
No mesmo país onde uma pessoa que ganha tão pouco que não atinge, sequer, o ordenado mínimo (não sei como conseguem viver!) e onde, normalmente, esse tipo de pessoas são pessoas relativamente ignorantes no que toca à burocracia do Estado (ganham pouco, sabem que não têm que pagar IRS e nem pensam nessas coisas inúteis como a entrega de um papel que não vai servir para nada), é multada por não ter entregue um papel inútil, os bancos, devendo milhões de euros em impostos, condenados em tribunal por isso, não pagam e vão protelando as aplicações de decisões dos tribunais, por expedientes processuais (e porque têm dinheiro para advogados mais trafulhas e os montantes em causa justificam os gastos) até estas decisões prescreverem e ficam sem pagar o que devem (esses montantes deverão sem compensados, na medida do possível, pelo que vão sacando aos desgraçados pobres, ignorantes e mal informados); este é um bom exemplo do que os nossos políticos apregoam como Estado de direito democrático.
O mesmo Estado de direito que aplica uma coima a um indivíduo que tenha um pneu careca porque está na lei que não pode circular assim; que obriga a quem fez um poço, porque a administração local não lhe pôs água em casa, a pagar licenças e taxas por extrair a água num terreno que é seu, porque está na lei; que obriga quem comprou casa própria e faz sacrifícios para a pagar e pagar um IMI que é um roubo, que é uma autêntica renda ao Estado, porque está na lei; que obriga a pagar na conta da água taxas de saneamento a quem tem fossas suas e não utiliza os esgotos públicos, pagas com o seu dinheiro, porque as câmaras não tinham feito saneamento quando as casas foram construídas, porque está na lei; que obriga as pessoas com mais de uma casa a pagar por cada casa tarifas de resíduos sólidos (como se fizesse lixo nas casas todas ao mesmo tempo) ou taxas de radiodifusão numa conta da luz por cada casa que tem (como se visse mais televisão do que uma pessoa que só tenha uma casa) e que obriga os próprios condomínios a pagar taxa de radiodifusão (como se os condóminos andassem pelas escadas e elevadores a ver televisão), porque está na lei; dizia eu, que o mesmo Estado que obriga o cidadão a pagar tudo e mais alguma coisa porque assim está escrito na lei, parece que faz leis que não são para aplicar: o caso do Sr. Isaltino Morais, que não cumpriu a lei que o obrigava a declarar o que tinha, pois parece que essa lei não era para aplicar. Isto feito pelo mesmo senhor que não se deve esquecer de aplicar aos munícipes de Oeiras todas as taxas e coimas que a lei lhe permitir aplicar! Extraordinário! Mais um bom exemplo de Estado de direito!
E é também este o Estado de direito, onde certos indivíduos (entre os quais o economista Silva Lopes, ex ministro do tempo do PREC), ao mesmo tempo que ganham quantidades obscenas de dinheiro, vêm dizer cá para fora que tem que se baixar os salários (vejam bem ao que nós chegámos, já não falam de congelar, falam de baixar, eles já não querem deixar que a inflação “coma” os salários de quem trabalha – se a inflação é baixa e “come” devagar, baixem-se mesmo!) a quem trabalha para continuar a dar cada vez mais a quem não o faz (por livre vontade ou não) e reclamam contra o aumento “brutal” do salário mínimo em 24 euros, para a valor exorbitante de 450 euros (que querem estes gajos fazer com tanto dinheiro: 450 euros?? Vida de rico!! Até já vai dar para comer quase todos os dias!!).
E temos um Estado de direito que é tão de direito que, além de a justiça não funcionar, dá tantos direitos aos criminosos que até faz com que tentar apanhar alguns seja considerado, pelos senhores do poder, inconstitucional. Pois é, ninguém consegue parar a corrupção (não interessa a quem legisla, pois eles é que são a grande parte da malta corrupta e não lhes interessa fazer leis contra si mesmos), as leis são de tal forma permissivas em relação a direitos dos arguidos, a expedientes processuais para atrasar até à prescrição, a expedientes processuais para anular provas inequívocas, que chega até a ser inconstitucional legislar de forma a condenar corruptos. Então que se pode fazer? Toca a tributar a corrupção! Quem for corrupto, ladrão, fuja ao fisco, quem, no fundo, enriquece ilegitimamente, não necessita de ter problemas com receio de “ir dentro”. No fundo a fórmula é muito simples: continuem no mesmo esquema de enriquecimento ilícito, que não vão dentro; o máximo que pode acontecer é ter que pagar impostos sobre o que se ganhou, seja na droga, seja com favores, seja com tráfico de armas ou de pessoas, seja com roubos a bancos, seja com o que for. Se forem apanhados, pagam 60% do que ganharam de forma criminosa e estão perdoados (é uma espécie de venda de indulgências). Assaltos a bancos? Taxa de imposto: 60%; venda de droga? Taxa de imposto: 60%. Desclassificar zonas de reserva ecológica nacional para a construção de centros comerciais? Taxa de imposto: esta aqui ainda não sei quanto será, mas desconfio que vai ser zero! Zero, aliás, como a maior parte do enriquecimento ilícito deste país vai continuar a ser, pois eu não acredito que bons advogados não dêem a volta a isto, ou não fossem as leis feitas por juristas que as deixam sempre cheias de lacunas para que depois possam ganhar rios de dinheiro a emitir pareceres sobre o que legislaram ou a ganhar causas em tribunal à custa de lacunas da lei, quer como advogados, quer como arguidos.
Por fim, o cão de água português (ibérico para os espanhóis). Que tem o pobre bicho a ver com isto? Nada, a não ser que é mais uma tontice que se inventa para encher de orgulho a cada vez mais vazia de comida barriga dos portugueses. É mais uma tontice para desviar a atenção dos portugueses da triste realidade em que o país está mergulhado, fazendo com que sintamos um fervor patriótico bacoco, tal como outras tontarias do género como a do maior futebolista do mundo ser português, do FC Porto que conseguiu empatar contra a rica e poderosa equipa do Manchester United em Manchester, como as constantes tolices com que gostamos de entrar para o Guiness, seja com concentrações de pais natais, seja com maiores assadores de castanhas do mundo, seja com o maior pão de ló, seja com o maior bolo rei, maior feijoada, maior largada de balões, maior árvore de natal ou com outras coisas estúpidas e inúteis com que nos bombardeiam na televisão.
E entretanto, lá vai o povo arfando de orgulho por ter um cão de raça portuguesa (ibérica, para os espanhóis) na casa branca, por acaso nascido nos Estados Unidos da América, enquanto a boca vai esquecendo, por fata de dinheiro, o sabor do pão de ló que nos pôs no Guiness, a menos que outra pastelaria, para fazer publicidade, faça outro ainda maior e o distribua pelo povo pobre, roubado, gozado, dorido de morte de tanto apertar o cinto para que outros possam, em seu nome e com sacrifício, comer o caviar pago por toda a gente e mudar a frota automóvel da Assembleia da República, a fim de ter carros que poluam menos! Isto só visto!

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Descubra as diferenças...


Eça de queirós, "Uma campanha alegre", Maio de 1871


Capítulo II: Os quatro partidos políticos

Há em Portugal quatro partidos: o partido histórico, o regenerador, o reformista, e o constituinte. Há ainda outros, mas anónimos, conhecidos apenas de algumas famílias. Os quatro partidos oficiais, com jornal e porta para a rua, vivem num perpétuo antagonismo, irreconciliáveis, latindo ardentemente uns contra os outros de dentro dos seus artigos de fundo. Tem-se tentado uma pacificação, uma união. Impossível! Eles só possuem de comum a lama do Chiado que todos pisam e a Arcada que a todos cobre. Quais são as irritadas divergências de princípios que os separam? - Vejamos:
O partido regenerador é constitucional, monárquico, intimamente monárquico, e lembra nos seus jornais a necessidade da economia.
O partido histórico é constitucional, imensamente monárquico, e prova irrefutavelmente a urgência da economia.
O partido constituinte é constitucional, monárquico, e dá subida atenção à economia.
O partido reformista é monárquico, é constitucional, e doidinho pela economia!
Todos quatro são católicos,
Todos quatro são centralizadores,
Todos quatro têm o mesmo afecto à ordem,
Todos quatro querem o progresso, e citam a Bélgica,
Todos quatro estimam a liberdade.
Quais são então as desinteligências? - Profundas! Assim, por exemplo, a ideia de liberdade entendem-na de diversos modos.
O partido histórico diz gravemente que é necessário respeitar as Liberdades Públicas. O partido regenerador nega, nega numa divergência resoluta, provando com abundância de argumentos que o que se deve respeitar são - as Públicas Liberdades.
A conflagração é manifesta!
Na acção governamental as dissensões são perpétuas. Assim o partido histórico propõe um imposto. Porque, não há remédio, é necessário pagar a religião, o exército, a centralização, a lista civil, a diplomacia... - Propõe um imposto.
«Caminhamos para uma ruína! - exclama o Presidente do Conselho. - O défice cresce! O País está pobre! A única maneira de nos salvarmos é o imposto que temos a honra, etc...»
Mas então o partido regenerador, que está na oposição, brame de desespero, reúne o seu centro. As faces luzem de suor, os cabelos pintados destingem-se de agonia, e cada um alarga o colarinho na atitude de um homem que vê desmoronar-se a Pátria!
— Como assim! - exclamam todos - mais impostos!?
E então contra o imposto escrevem-se artigos, elaboram-se discursos, tramam-se votações! Por toda a Lisboa rodam carruagens de aluguel, levando, a 300 réis por corrida, inimigos do imposto! Prepara-se o cheque ao ministério histórico... Zás! cai o ministério histórico!
E ao outro dia, o partido regenerador, no poder, triunfante, ocupa as cadeiras de S. Bento. Esta mudança alterou tudo: os fundos desceram mais, as transacções diminuíram mais, a opinião descreu mais, a moralidade pública abateu mais - mas finalmente caiu aquele ministério desorganizador que concebera o imposto, e está tudo confiado, esperando.
Abre a sessão parlamentar. O novo ministério regenerador vai falar.
Os senhores taquígrafos aparam as suas penas velozes. O telégrafo está vibrante de impaciência, para comunicar aos governadores civis e aos coronéis a regeneração da Pátria. Os senhores correios de secretaria têm os seus corcéis selados!
Porque, enfim, o ministério regenerador vai dizer o seu programa, e todo o mundo se assoa com alegria e esperança!
— Tem a palavra o Sr. Presidente do Conselho.
— O novo presidente: «Um ministério nefasto (apoiado, apoiado! - exclama a maioria histórica da véspera) caiu perante a reprovação do País inteiro. Porque, Senhor Presidente, o País está desorganizado, é necessário restaurar o crédito. E a única maneira de nos salvarmos...»
Murmúrios. Vozes: Ouçam! ouçam!
«...É por isso que eu peço que entre já em discussão... (atenção ávida que faz palpitar debaixo dos fraques o coração da maioria...) que entre em discussão - o imposto que temos a honra, etc. (apoiado! apoiado!)»
E nessa noite reúne-se o centro histórico, ontem no ministério, hoje na oposição. Todos estão lúgubres.
— «Meus senhores - diz o presidente, com voz cava. - O País está perdido! O ministério regenerador ainda ontem subiu ao poder, e doze horas depois já entra pelo caminho da anarquia e da opressão propondo um imposto! Empreguemos todas as nossas forças em poupar o País a esta última desgraça! - Guerra ao imposto!...»
Não, não! com divergências tão profundas é impossível a conciliação dos partidos!

segunda-feira, 6 de abril de 2009

A ratoeira.

Um rato, olhando por um buraco da parede, vê um lavrador e a sua mulher a abrir um pacote. Pensou que tipo de comida poderia conter.
Ao ver sair do pacote uma ratoeira, correu ao pátio a avisar o resto da bicharada da quinta.
Foi ter com a galinha, que lhe respondeu que compreendia que aquilo podia ser um grande problema para o rato, mas para ela aquilo não a incomodava nada, que não a prejudicava.
A seguir foi ter com o porco, que lhe respondeu da mesma maneira, acrescentando que se lembraria do rato nas suas preces.
Por último, foi ter com a vaca, que ironizou “Uma ratoeira? Crê que estou em perigo?”.
O rato voltou à toca cabisbaixo e triste, por ninguém se importar verdadeiramente com ele, não conseguindo obter mais que umas preces do porco.
Naquela noite ouviu-se, de repente, o som da ratoeira em acção e a mulher do lavrador levantou-se, quase às escuras, para ver o que se passava. Mas quem tinha sido apanhado na ratoeira tinha sido uma cobra venenosa e não o rato. Na semi obscuridade, e não estando a mulher a contar com uma cobra em vez de um rato, a mulher foi picada pela cobra e teve que ser levada rapidamente para o hospital.
Quando voltou, estava com muita febre, o que recomendava uma canja de galinha; o agricultor pegou na sua faca afiada e foi providenciar o ingrediente principal…
Seguidamente, a mulher piorou, o que fez com que muitos amigos e familiares a viessem visitar; para dar comida a tanta gente, o lavrador matou o porco…
Como a mulher piorou ainda mais e acabou mesmo por morrer, veio muita gente ao funeral, pois esta era uma pessoa muito querida na terra; para alimentar ainda mais gente, o lavrador matou a vaca…
Isto para dizer que não há problemas que não nos dizem respeito, pois a verdade é que quando há uma ratoeira na casa toda a quinta corre risco; que no nosso país e no nosso planeta o problema de um, é o problema de todos. E que enquanto os políticos viram o povo um contra o outro, as classes umas contra as outras, as profissões umas contra as outras, os professores, os polícias, os juízes, os magistrados, os padres, os funcionários públicos, os médicos, os enfermeiros, os farmacêuticos, os notários, os estudantes, etc., uns contra os outros, para poderem prejudicar toda a gente e ninguém se importar (pois não é nada connosco), é importante que tomemos consciência que tudo o que é criar uma ratoeira para um é criar uma ratoeira para todos e não devemos dizer, com uma recalcada inveja dos outros e olhando só para o nosso umbigo, “que é bem feito”, pois a próxima ratoeira será posta para nós e a resposta dos outros será a mesma que a gente deu. E que temos que lutar todos juntos contra as ratoeiras que nos continuam a pôr todos os dias e acabar com o saque a que nos sujeitam constantemente para sustentar as clientelas políticas e temos que deixar de ter vergonha de dizer “NÃO!” .
Pois, como dizia o poeta russo Maiakovski (1893-1930) antes de ser assassinado após a revolução de Lenine:

Na primeira noite, eles aproximam-se
e colhem uma flor do nosso jardim.
E não dizemos nada.

Na segunda noite, já não se escondem,
pisam as flores, matam o nosso cão.
E não dizemos nada.

Até que um dia, o mais frágil deles, entra
sozinho em nossa casa, rouba-nos a lua,
e, conhecendo o nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.

E porque não dissemos nada,
já não podemos dizer nada.

Depois de Maiakovski houve aplicações às várias realidades…

Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso
Eu não era negro
Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário
Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável
Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho o meu emprego
Também não me importei
Agora estão-me a levar
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo.
Bertold Brecht (1898-1956)


Um dia vieram e levaram meu vizinho que era judeu.
Como não sou judeu, não me incomodei.

No dia seguinte, vieram e levaram
meu outro vizinho que era comunista.
Como não sou comunista, não me incomodei.

No terceiro dia vieram e levaram meu vizinho católico.
Como não sou católico, não me incomodei.

No quarto dia, vieram e levaram-me;
já não havia mais ninguém para reclamar...
Martin Niemöller, 1933 - símbolo da resistência aos nazis.


Primeiro eles roubaram nos sinais, mas não fui eu a vítima,
Depois incendiaram os autocarros, mas eu não estava neles;
Depois fecharam ruas, onde não moro;
Fecharam então o portão da favela, que não habito;
Em seguida arrastaram até a morte uma criança, que não era meu filho...
Cláudio Humberto, 2007
Não podemos continuar de braços cruzados a assobiar para o lado, como se não fosse nada connosco. Temos que tomar as dores de morte dos outros como nossas.