sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Comprar coisas reparáveis?

Há pouco tempo estava a ver televisão, a mudar de canal para canal à espera de encontrar alguma coisa que me interessasse (há um anglicismo para este acto, mas eu não gosto muito de anglicismos e evito-os). Chego a um canal onde estava a dar um anúncio qualquer destes que agora estão na moda acerca de reciclagem e outros conselhos muito ecologistas e onde ouço uma coisa fantástica, do género “compre coisas de qualidade, que possam ser reparadas”! Fantástico! É nestas alturas que eu me convenço mais que o meu pai é um sábio, um visionário, uma mente incompreendida mas que, aos poucos, o mundo lhe vai dando razão. E fico feliz por ter crescido a ouvir as coisas sábias que ele dizia e que, no entanto, eram para os outros motivo de chacota. Mas como as coisas mudaram: hoje são eles que praticam certas coisas que antes criticavam e é ele que resiste a muita coisa que antes dizia que devia ser feita. Falemos, então, de reciclagem e de “coisas reparáveis” (só um cheirinho, pois isto levava-nos tão longe…).
Conta o meu pai que, antigamente, tudo era reciclado. Que havia quem vivesse de recolher papel, vidro, metais, peles de coelho, etc.. Foi assim que ele cresceu. E, durante muitos anos, eu lembro-me de o meu pai juntar centenas de quilos de papel e ir vender a 5 escudos o quilo (não ficava nem mais rico, nem mais pobre, mas isso dava-lhe gozo). O mesmo para o vidro, mas em menos escala. Quando qualquer coisa se avariava lá em casa, fazia os possíveis por repará-la. Ora, isto era o motivo da maior chacota por parte de quem auferia de rendimentos muito mais baixos que os dele: “mas um homem que tem o ordenado que tem, tem necessidade disso?”.
Pois bem, acabaram-se os sítios onde o meu pai ia vender os seus produtos recicláveis e lançou-se uma campanha de marketing na televisão a falar aos ignorantes que a poluição era muita, que havia produtos que não se deviam misturar no lixo normal e que deveriam ser deitados em sítios próprios para serem reciclados. E os ignorantezinhos, que antes se riam do facto e o meu pai juntar e vender esses tais produtos recicláveis e receber algum por isso, passaram a separar, a juntar, e a ir entregar isso nos tais recipientes, sem que lhes paguem nada e deixando meia dúzia de espertalhões “abotoarem-se” com o esforço do seu trabalho (se o papel era pago ao quilo ao meu pai por um indivíduo que o ia vender a empresas de papel e isso dava para os dois ganharem algum, hoje hão de ser essas empresas que fazem a recolha que se hão de “abotoar” com todo – o qual é muito mais, pois todos os “carneirinhos” lá vão pôr o papelinho como a televisão manda, inclusivamente fazendo comparações entre os “carneirinhos” da reciclagem e macacos!). Foi aí que o meu pai deixou, e com razão, de reciclar: pois se antes lhe pagavam para o fazer, porque motivo há-de ele fazer agora se deixaram de lhe pagar? Mas pronto, esta da reciclagem já vem de há uns anos, parece que os macacos já a sabem fazer e até já estão habituados a ela.
O que eu estranhei foi mesmo o apelo a que se comprassem coisas de qualidade e que pudessem ser reparadas! Que sacrilégio para o capitalismo! Então isso diz-se? Se se reciclar, ainda há uma malta que se “abotoa” com o trabalho dos outros (o dos tais macacos recicladores), por isso está tudo bem para o capitalismo. Agora, se se repararem as coisas, como é que as empresas vão continuar a produzir mais e mais, e como é que vão continuar a aumentar os lucros e como é que o PIB vai continuar a subir até ao céu?! Meu Deus, o Capital precisa que se deitem fora coisas boas (reciclem-se) e que se continuem a produzir coisas que não precisamos. E os governantes precisam disso também, precisam de cada vez mais gente a trabalhar e a produzir para manter o seu nível de carga fiscal e para poderem manter o esquema de pirâmide da Segurança Social, em que é necessário cada vez mais população activa para pagar as reformas daqueles que já as pagaram ao longo da vida, mas cujo dinheiro foi usado para dar a quem não quer trabalhar (desculpem, “aos que mais precisam”!) e à classe política que tem que enriquecer cada vez mais rapidamente antes que isto “dê o berro” de uma vez por todas (abençoado Salazar, que lá esteve 40 anos e morreu remediado!), em vez der utilizado num fundo capitalizável e guardado para a altura em que as pessoas se reformavam.
Mas é este o nosso mundo, um mundo onde cada vez mais se começa a ver que o modelo capitalista em que vivemos está esgotado, é incomportável para o planeta e para o bem estar das pessoas, mas ao mesmo tempo os vícios que vêm de trás impedem que se organize o mundo como deve ser. Como é possível querer aumentar o PIB e o horário de trabalho e a população activa e ao mesmo tempo dizer às pessoas para poupar e para comprar coisas que se possam consertar em vez de deitar fora? Este paradoxo do mundo capitalista e das “democracias ocidentais” é mais uma coisa que outra coisa não faz do que me causar mais umas dorzitas de morte. E “dorzitas” é favor!

2 comentários:

Anónimo disse...

Bem visto!
No entanto, eu interpreto de forma diferente esse repto dos media.
A ideia é dizer às pessoas que devem fazer o contrario daquilo que vinham fazendo nos ultimos anos. Ou seja, deixar de comprar o que precisam - e mesmo o que não precisam -, de muito baixa qualidade no chinês, so porque ficou mais barato. Mais tarde ou mais cedo, elas apercebem-se que o que compraram não serve para nada e deitam fora (pois a qualidade é tão ma que inviabiliza a reutilização).
Esses produtos são produzidos ao preço da chuva porque (1) a China ainda pratica salarios de miséria, e (2) as materias utilizadas (geralmente plasticos e fibras sintéticas) são de muito baixa qualidade. Entretanto, o planeta sofre com a poluição ocasionada pela produção desses bens e com a rarefacção dos recursos, o que contribui para o aumento da entropia assim como assinalado por Nicholas Georgescu-Roegen. Na mesma linha de pensamento, o economista americano Herman Daly alertou o mundo para o perigo do aumento do consumo de recursos (utilizando o termo de "throughput"), e a necessidade de conciliar a economia com a ecologia ("frugality first") o que segundo esta corrente passa inevitavelmente por um "decrescimento" economico.
Este debate entre o crescimento verde e a necessidade de "decrescimento" ainda não esta fechado. Pessoalmente, acho que o motor do crescimento que pode tirar as economias mundiais do marasmo economico imposto pela crise financeira é o desenvolvimento da industria "verde". So uma nova revolução industrial que transforme completamente as industrias nacionais, adaptando-as aos novos desafios da sustentabilidade, pode relançar a maquina do cresimento economico. Por exemplo, a construção de meios de transporte mais amigos do ambiente pode criar vantagens competitivas para os paìses percussores, em termos de geração de riqueza e de empregos bem remunerados. Portanto, sou daqueles que pensa que um mundo mais sustentavel não tem que ser um mundo mais pobre.
Nos como consumidores temos uma palavra a dizer. Eu ca estou fora dessas loucuras do chinês, do IKEA e das Zaras. Compro o que preciso na medida em que os meus rendimentos me permitam. De preferência bom (para durar muito tempo) e feito na proximidade de modo a reduzir as externalidades de transporte e sobretudo impulsionar a economia nacional que bem precisa do nosso apoio [ao contrario daquilo que as mentes brilhantes escrevem nas colonas de opinião dos jornais: http://ultimahora.publico.clix.pt/noticia.aspx?id=1355348].
Se isto no fundo é reconhecer que os nossos pais tinham razão, ainda melhor. Aliàs, não foi so no "consumismo" que esta sociedade capitalista regrediu, também na arquitectura as coisas parece que andaram para tràs. Ora comparem a qualidade das casas que eram feitas no inicio do sec. XX com aquelas que são feitas agora, em termos de qualidade de materiais, isolamento e desenho. Rapidamente chegamos à conclusão que os antigos estavam mais por dentro dos problemas do que as gerações mais recentes. Como diria o ("socia") Barreto no seu "Portugal, um retrato social": "ha mudanças que não vêem para melhor".
Grande abraço,
Nuno.

Batinas disse...

Interessante, o teu comentário. Gostei de saber que esse economista, o Herman Daly, também pensa como eu, que a economia tem que decrescer. Andei aqui a fazer umas pesquisas na net acerca dele e li umas coisas giras. Claro que não percebi nada nem de entropia, nem de termodinâmica, mas, apesar de ser um leigo nessas matérias, penso que o mundo não aguenta mais crescimento e que o futuro terá que passar por decrescimento económico e populacional (dificil de aceitar para os políticos que, como já disse, criaram um esquema de pirâmide na segurança social, em que gastam o que recebem para as reformas, e necessitam que outros as venham pagar, pelo que necessitam de cada vez mais gente). Mas é um tema para eu escrever um dia destes.